Conta a lenda que, há muitos séculos, os habitantes de Barcelos andavam alarmados com um crime praticado nessas terras e, mais ainda, por não saberem quem seria o criminoso que o cometera. Certo dia, apareceu um peregrino galego que rapidamente se tornou no principal suspeito. Porque ninguém achava possível que ele se dirigisse a Santiago de Compostela em cumprimento de uma promessa, as autoridades prenderam-no e, apesar dos seus juramentos de inocência, julgaram-no à moda de então, condenando-o à forca.
Vencido pelo pesadelo das circunstâncias, o galego pediu, em última vontade, que o levassem à presença do juiz que o condenara. Concedida a autorização, chegou no exacto momento em que o magistrado e os amigos se preparavam para degustar uma boa refeição – galo assado. Desesperado, o galego voltou a proclamar a sua inocência e, perante a incredulidade dos presentes, apontou para a mesa lançando um desafio: “É tão certo estar inocente como certo é esse galo cantar quando me enforcarem.” Risos se fizeram ouvir, mas o que é certo é que ninguém ousou tocar no galo. Quando o peregrino estava a ser enforcado, o que parecia impossível aconteceu! O galo assado ergueu-se na mesa e cantou. De imediato, o juiz correu até à forca e mandou soltar o galego, deixando-o seguir em paz o seu caminho.
Perpetuando esta lenda, nasce nos anos 30 o Galo de Barcelos, pelas mãos de um artesão iluminado que, como forma de subsistência, conseguiu criar um ícone que acabou por se transformar num dos mais importantes símbolos da cultura nacional. Simbolizando este galo o triunfo da Justiça quando se luta por ela, a força da verdade soberana que transcende todos nós, assim se inscreveu Barcelos na tradição de desafiar o seu desterro e de afirmar a sua razão.
Neste sólido percurso de Barcelos pela honra de sua terra, o Mistério que hoje vos trago não é mais uma lenda, é o nome de um homem. Um homem que, desafiando a pobreza, a doença e os preconceitos da sociedade, conseguiu sempre sobreviver misteriosamente. Daí lhe provem o nome e a fama de quem ousou afrontar o instituído. Mistério nasceu num berço de barro, na terra de Rosa Ramalho, a virtuosa analfabeta (descoberta nos anos 50 pelo igualmente virtuoso António Quadros) que revolucionou o figurado Português através das suas delirantes e fantasiosas visões. Mistério nasceu numa terra onde a tradição do barro inspirou modernistas como Amadeo de Souza Cardoso, Eduardo Viana e até Sónia e Robert Delaunay, que viveram em Vila do Conde entre 1916/17.
Mistério foi um marginal, um comunista como chegou a ser rotulado, uma pessoa de mal que exagerou a arte da crítica através da sua obra, e assim se viu excomungado, a si e aos seus. Nas suas peças, como esta que aqui vos mostro – A Ceia dos Diabos (executada em sua homenagem pelo seu filho Francisco Mistério) – aprendeu a escrever as suas atitudes de revolta, em figurações diabólicas e altamente provocativas, como se de um “rapper” de músicas de barro pintado se tratasse.
A Ceia dos Diabos é o delírio de um homem, cujo imaginário fantástico lhe induz uma sobre figuração do universo popular rural, cujo significado se conclui, apesar de muito chocante, não se tratar mais do que a expressão de uma ingenuidade consciente, típica da tradicional sabedoria popular.
A Ceia dos Diabos não se trata, no meu entender, de uma afronta à ceia de Cristo, mas antes uma crítica à própria forma como a sociedade se critica a si própria.
Na minha interpretação, treze ridículos e coloridos diabos, de caudas longas e cifres curtos, reúnem-se em festa ao redor de seu rei, com o galo no centro, o mesmo galo que cantou para fazer justiça e repor a verdade, e que deste modo acabará por estragar-lhes a festa.
Neste sentido, a Ceia dos Diabos representa, para mim, a genuinidade da discórdia que se faz ouvir através de atitudes superficialmente chocantes, mas que não são mais do que gritos desesperados de quem procura o seu lugar no mundo. Destas manifestações de revolta temos a observar que são muitas vezes focos de grande criatividade e não exercícios de violência gratuita, como foi o caso do movimento punk em Inglaterra.
Esta é a minha visão liberal do mundo. De Barcelos, o Galo ensina-nos a prática da verdade e Mistério a ironia da mentira. Uma sociedade moderna é aquela que é capaz de saber viver, incluindo e não excluindo todas as suas manifestações críticas. Por outro lado, uma sociedade moderna é também aquela que é capaz de saber observar, procurando na história das suas tradições populares, o esclarecimento de que o mais moderno se constrói sempre a partir do mais antigo.
Em Barcelos existe um património de arte popular, particularmente de olaria do “figurado”, que perpetua a nossa memória enquanto povo e que nos estimula a consciência da nossa herança cultural.
Trata-se de um espólio que, apesar de estar ligado a objectos do quotidiano, possui um conjunto de raras expressões simbólicas, estéticas e criativas.
Sardões, lagartos e licranços. Porcos e a sua matança, pombais, cabras, pássaros de quatro patas e as “pitas” (galináceos de três patas). Paliteiros, assobios de figura, dragões, anjos e diabos. Papões, monstros, bichos disformes com cornos e seis pernas, um vasto repertório de um inimaginável bestiário de formas e atitudes.
Permitam-me então concluir que, neste meu exercício de reflexão sobre os símbolos do nosso País, em Barcelos existe uma mina de recursos criativos ainda em bruto, que apesar de ser do conhecimento público ainda não foi dela extraído, nem o conhecimento e práticas de boa (ou má) cidadania, e ainda menos foi explorado o imenso potencial económico directo e indirecto que se apresenta.
Assim venha a ser a nossa consciência colectiva e assim queiramos aspirar à riqueza, sem vergonha de procurarmos no nosso passado alguns dos alicerces para o nosso futuro.
Mas porque também me reservo o direito à crítica, em Barcelos parece haver quem não tenha sido ainda capaz de interpretar correctamente o seu passado de barro e, num exercício de claro desinteresse nacional, o tenha atirado à parede, acabando este por cair, com muito pouca honra, para a 2ª divisão a que ironicamente se apelida de “divisão de honra” do futebol nacional.
Fica a nota de que devemos ser capazes de saber honrar os nossos pergaminhos, com a consciência de que a afirmação da nossa razão, sempre que possível, não se deverá sobrepor ao interesse nacional.
Tanto mais que Barcelos é o guardião do mais internacional dos símbolos de Portugal e, provavelmente, o que melhor retrata a alma do que é ser português.
O Galo que em Barcelos encantou o poleiro magistral, perpetua hoje pelo Mundo a vontade de um país que se quer justo, de um povo que quer saber transformar uma tradição num factor de desenvolvimento económico e de uma alma que nunca deixará de cantar, sempre que estiver em causa a verdade de Portugal.
Assim se recontextualizem os nossos símbolos, se traduzam em pólos de desenvolvimento as nossas tradições, pois como disse Paul Valery, também eu não me cansarei de afirmar que “celebrar e continuar a tradição não é o conservar das cinzas, mas o acender das chamas”.
Texto retirado daqui.
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